02 novembro 2009


À Carlos Marighella

A chama que não se apaga

Marighella foi assassinado numa emboscada preparada por agentes do governo da Ditadura Militar em 4 de novembro de 1969. É das grandes personalidades da história do Brasil.

Prática política radical

Florestan Fernandes
(...) No cenário de violência decorrente da repressão policial-militar, a morte trágica de Carlos Marighella ofuscou a trajetória de sua vida. Vítima da ditadura,caiu baleado em uma emboscada infame, arquitetada e realizada com apuro. Sua presença já havia incendiado a imaginação dos jovens e de ampla parte da geração adulta com inclinação radical. Todos queriam limpar o Brasil dessa nódoa e esperavam a oportunidade propícia a manifestações incisivas.

O Marighella dos primeiros anos fora tragado no tempo e o "último Marighella" acabou sendo mal conhecido no conjunto de sua produção teórica. Ele percorreu o caminho da disciplina, mas evoluiu na onda de rebelião contra os métodos de direção do PCB. Nas duas etapas, ligadas entre si, a aquisição de experiência política legal e clandestina e o florescimento autônomo da prática revolucionária fervem no horizonte intelectual de um combatente ardoroso.

Contudo, é o "último Marighella" que interessa mais vivamente ao estudioso da transformação e crise da esquerda revolucionária. Ele rasga uma concepção do mundo original no Brasil. Vincula a herança clássica do marxismo à efervescência do pensamento contestador latino-americano. Não copia o "modelo cubano", dele extraindo apenas ensinamentos básicos. Em roteiro próprio, prefere aproveitar os dados de uma situação histórica que pedia uma representação de síntese.
As circunstâncias eram propícias às tarefas a que devotou sua vocação crítica. A ditadura militar abriu brechas profundas em uma realidade sempre mistificada. A revisão histórica e política proporcionavam novas descobertas.

Ao golpear a sociedade constituída, a ditadura colocou em realce as debilidades do desenvolvimento capitalista e do Estado que favorecia os grão-senhores, da terra ou do exterior. O desmascaramento atingiu níveis audaciosos e originais.

Na outra ponta, o retraimento da direção do PCB exigia um ataque análogo. Nunca, antes, seus críticos chegaram tão longe ou foram tão inventivos. Nem mesmo os trotskistas faziam-lhe sombra, porque sua cisão mais importante trazia a marca de um paradigma teórico e prático também importado. Carlos Marighella alargou a teoria, para que nela coubessem as crueldades sofridas pelos de baixo; e estendeu a prática, incluindo nela coerência e firmeza. Porta-se com equilíbrio, ficando rente aos questionamentos essenciais.

Esse Marighella, que alcança a plenitude nos derradeiros anos, interessa a todos nós pela maneira de colocar a problemática do marxismo revolucionário no Brasil. Sua principal contribuição consiste em realçar a adequação política envolvida nas asperezas e nas possibilidades da sociedade brasileira. Sob muitos aspectos, aparece entre os grandes revolucionários da nossa época, que não assimilavam o marxismo passivamente, pois entenderam teoria e prática como resultantes de condições históricas específicas, combinadas a fins que se repetem em escala geral. Elaborou, desse modo, suas concepções de síntese, adequadas às atividades concretas, opondo-as às abstrações do padronizado ABC do comunismo. (...)

“A Contestação Necessária – Retratos Intelectuais de Inconformistas e Revolucionários”, coletânea de artigos e ensaios inéditos de Florestan Fernandes, publicada pela Editora Ática alguns meses após a sua morte do sociólogo-militante, ocorrida em 1995.

Carlos Marighella: a chama que não se apaga

Florestan Fernandes

O 4 de novembro de 1969 incorporou-se à história graças a um feito policial-militar que culminou na morte de Carlos Marighella. Faz portanto, quinze anos que morreu o principal líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), figura política que se tornara conhecida como militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), seu dirigente de cúpula e também seu deputado no Congresso que elaborou a Constituição de 1946.

Ele foi perseguido como a caça mais cobiçada e condenado à morte cívica, à eliminação da memória coletiva. Só em dezembro de 1979, quando seus restos mortais foram trasladados para Salvador, sua cidade natal, Jorge Amado proclamou o fim da interdição expiatória: “Retiro da maldição e do silêncio e aqui inscrevo seu nome de baiano: Carlos Marighella”.

No ano passado, removemos outra parte da interdição, em uma cerimônia pública de recuperação cívica e de homenagem que “lavou a alma” de socialistas e comunistas em São Paulo.

Um Homem não desaparece com a sua morte. Ao contrário, pode crescer depois dela, engrandecer-se com ela e revelar sua verdadeira estátua à distância. É o que sucede com Marighella. Ele morreu consagrado pela coragem indômita e pelo ardor revolucionário. Os carrascos trabalharam contra si próprios; ao martirizá-lo, forjaram o pedestal de uma glória eterna. Agora, esse homem volta à atualidade histórica. Ele não redimiu os oprimidos nem legou um partido novo.

Mas atravessou as contradições que vergaram um partido que deveria ter enfrentado a ditadura revolucionariamente, acontecesse o que acontecesse. Desmascarou assim a realidade dos partidos proletários na América Latina. Em uma situação histórica de duas faces (como gosto de descrever), contra-revolução e revolução ficam tão presas uma à outra que são os dois lados de uma mesma moeda. À superfície, parece que a luta de classes opera em mão única – no sentido e a favor dos donos do capital e do poder.

Todavia, no subterrâneo (na “infra-estrutura da sociedade” ou no “meio social interno”) existem várias fogueiras, e o aparecimento de alternativas históricas pode depender de “um punhado de homens corajosos” ou de partidos organizados e preparados para a revolução.

Em vários países da América Latina, entre eles o Brasil, a burguesia – apesar da

dependência econômica, cultural e política – está encravada nas estruturas de poder nacional e as controla com mão de ferro. As ditaduras, “tradicionais” ou “modernas”, marcam as oscilações súbitas, às vezes de curta duração, da guerra civil latente para a guerra civil aberta. Nenhum partido dos oprimidos pode pretender-se revolucionário, na orientação socialista ou comunista, se não estiver preparado para enfrentar tenaz e ferozmente essas oscilações. A “legalidade”, na acepção de uma sociedade civil civilizada, é uma ficção.

O grande valor de Carlos Marighella – como o de outros que enfrentaram corajosa e tenazmente aquelas contradições, com a “crise interna do partido” – está no fato de ter compreendido objetivamente e exposto sem vacilações o que a experiência lhe ensinava. No diagnóstico, algumas vezes, ficou preso a uma terminologia equivocada e a concepções que ele pretendia apurar e superar através de uma prática revolucionária conseqüente com o marxismo-leninismo e com as exigências da situação histórica. Por fim, acabou vitimado pela vulnerabilidade central: a inexistência do partido que poderia abrir novos rumos na transformação revolucionária da sociedade.

Um partido desse tipo não nasce de um dia para o outro. Requer uma longa e difícil construção. Marighella caiu nos ardis que apontara, tentando derrotar o inimigo onde era impossível fugir ao seu “cerco militar estratégico”. Não fora ao fundo da análise da revolução cubana, ignorando o quanto uma situação histórica revolucionária simplificara os caminhos daquela revolução. A “via militar” revolucionária, no entanto, se mostraria frágil sob o capitalismo dependente mais diferenciado e, por vezes, avançado na América do Sul, especialmente depois da vitória do Exército Rebelde em Cuba.

As deficiências e os equívocos de Carlos Marighella resultaram de fatores

incontroláveis e insuperáveis. Ele foi até onde seu dever exigia, sem meios para tornar a missão necessária realizável. A revolução proletária não é um “objetivo” do partido revolucionário. Ela é, ao mesmo tempo, sua razão de ser, seu sustentáculo e seu produto, mas de tal modo que, quando o partido revolucionário surge, ele é um coordenador, concentrador e dinamizador das forças sociais explosivas existentes. Como assinalou Karl Marx, “a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir”. O que qualifica e distingue as posições assumidas por Carlos Marighella é o propósito de romper com uma linha adaptativa, que retirava o Partido Comunista do pólo proletário da luta de classes, convertendo-o em “cauda” permanente e em esquerda da burguesia.

O seu marxismo-leninisimo ficou muito mais próximo da intenção que da elaboração teórica e prática conseqüente. O que não o impediu de encontrar, através da prioridade política e da acumulação de uma vasta experiência concreta negativa, uma versão objetiva das sinuosidades do comunismo adaptativo e tolerante que o marxismo acadêmico só descobriu tarde demais ou, então, nunca teve gana de desmascarar. No momento mesmo no qual nos vemos de novo impelidos para os erros do passado, parece indispensável voltar às suas críticas e às razões de suas rupturas (ainda que seja impensável reabsorver o conjunto de soluções teóricas e práticas que inspirou e difundiu). Em três pontos, pelo menos, é indispensável tomá-lo como referência de uma purificação marxista dos nossos partidos revolucionários.

O primeiro ponto tem a ver com os vínculos diretos da teoria com os fatos concretos e com a realidade, pela experiência crítica e pela ação crítica. Essa orientação é básica para a elaboração de um comunismo made in América Latina, construído por nós, embora com raízes marxistas e leninistas. Ele situa em plano secundário o intelectual “teórico”, eurocêntrico, e repele as “soluções importadas”, que impunham os modelos invariáveis de algum monolitismo soviético, chinês, etc.

O segundo ponto é o mais decisivo, pois põe em questão qual é o partido revolucionário que deve surgir das condições econômicas, sociais e políticas dos países da América Latina (e do Brasil, em particular). Uma sociedade civil que repele a civilização para todos e um Estado que concentra a violência no tope para aplicá-la de forma ultra-opressiva e ultra-egoísta envolvem uma barbárie exasperada específica. Tal partido deverá ser, sempre, uma espécie de iceberg, por mais confiável e durável que pareça sua “legalidade”. Isso lhe permitirá interagir dialeticamente nos dois níveis da trasformação revolucionária da sociedade – o burguês, por dentro da ordem, e o proletário e camponês, contra a ordem.

O terceiro ponto refere-se à aliança com a burguesia, que nunca deveria ter alcançado a densidade e a permanência que atingiu. Um partido comunista dócil à burguesia nunca será proletário nem revolucionário e terá, como sina inexorável, que perverter a aliança política. “O segredo da vitória é o povo”. O eixo de gravitação das alianças está, portanto, na solidariedade entre os oprimidos; em suas lutas antiimperialistas, nacionalistas e democráticas, tanto quanto nas suas tentativas de domar a supremacia burguesa, conquistar o poder ou implantar o socialismo.

Em suma, Carlos Marighella era um sonhador com os pés no chão e a cabeça no lugar. Ele ainda desafia os seus perseguidores e merece dos companheiros de rota (e do antigo partido) que levem seriamente em conta sua tentativa de equacionamento teórico e prático do enigma do movimento comunista no Brasil.


Florestan Fernandes Folha de S. Paulo, 12/11/1984


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